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Origens do campesinato negro na Baixada de Jacarepaguá nos séculos XIX e XX


Jornal Última Hora, 1954. Família de pescadores da Barra da Tijuca. / Fonte: APESP, Fundo Última Hora.

Por: Renato Souza Dória.

Professor e pesquisador do IHBAJA.

 


 

Durante a segunda metade do século XIX na Baixada de Jacarepaguá, um fato extremamente relevante e chama a atenção a respeito dos usos da terra pelos Beneditinos na região que atualmente correspondem aos bairros de Camorim, Vargem Pequena e Vargem Grande: a existência de inúmeros lotes agricultáveis ocupados em arrendamento por trabalhadores negros libertos e escravizados num regime de "economia autônoma". Analisando documentos da época, o historiador Júlio Dória identificou mais de 300 arrendatários nas terras do Engenho do Camorim e nas fazendas das Vargens.


No mesmo período, a quantidade de escravizados nas terras dos beneditinos em Jacarepaguá também é surpreendente, chegando a ultrapassar 1200. No entanto, o mesmo historiador destaca que as informações nos documentos pesquisados não são muito claras, ficando encoberto a origem étnica dos cativos e se a procedência dos mesmos era ilegal, uma vez que o tráfico de escravizados já havia sido proibido, efetivamente, desde 1850. Além domais, estas e outras lacunas levam ao questionamento da possibilidade da existência da prática da escravização indígena coexistindo com a dos afro-americanos na região.


A respeito das alforrias praticadas no mesmo período pelos beneditinos em suas terras, Júlio Dória informa que foram mais de 80, sendo que destas mais de 15 foram concedidas a mulheres escravizadas que haviam se casado. Outros historiadores já registraram que nas terras beneditinas da Baixada Fluminense a quantidade de negros e negras aquilombados eram significativas. Esta situação se confirma, também, em outras proporções na Baixada de Jacarepaguá com a existência dos quilombos do Camorim e da Sacarrão. Além dos aquilombados, temos que considerar os ex-cativos que habitavam as terras dos religiosos e que puderam, por conta própria, comprar sua alforria.


Mas, afinal, o que estas informações significam para aquele período? Em primeiro lugar, devemos lembrar que a sociedade carioca do século XIX permitia por lei a escravização de negros e isto tinha um peso considerável na organização das hierarquias sociais, determinadas por critérios étnico-raciais. Na prática isto correspondia a uma posição social vantajosa aos indivíduos brancos e católicos em relação à negros, indígenas, pardos, mestiços e praticantes de outras religiões, mesmo havendo níveis semelhantes de riqueza ou de pobreza.


Em segundo lugar, considerando essa estrutura social racialmente excludente da sociedade carioca do século XIX, a situação não era igualmente favorável em relação ao acesso à terra para as populações marginalizadas. No entanto, os dados acima, em relação às fazendas dos Beneditinos em Jacarepaguá, apontam para a direção contrária. Neste sentido, constatamos a existência em Jacarepaguá de um fenômeno bastante estudado pelos historiadores desde a década de 1970, porém, negligenciado nos relatos sobre história local: a existência de um campesinato negro.


Sabe-se que era comum, no século XIX, os beneditinos concederem lotes de terra a homens e mulheres negras escravizados que decidissem casar-se. Inclusive, esta prática era estimulada pelos religiosos. Por outro lado, é muito conhecida, também, a prática de fazendeiros do mesmo período, relatarem que a melhor forma de evitar as revoltas de escravizados nas fazendas de café era cedendo um lote de terras para que eles mesmos pudessem, a partir do próprio trabalho, obter o seu sustento.


Quanto aos quilombos, devido aos sucessivos embates contra as forças policias do Império, possuíam uma dinâmica de surgimento e deslocamento que foi responsável, em parte, pelo movimento de interiorização do espaço ocupado pela cidade. Os quilombos ocupavam áreas devolutas ou "desabitadas, entre os sítios próximos à área central ou aquelas localizadas nas freguesias rurais".


Mas, preferencialmente, os negros fugidos do cativeiro formavam os quilombos em áreas não aproveitadas pelas fazendas, como os charcos e as encostas de morros com densas coberturas florestais. Nas terras beneditinas de Iguaçu (Baixada Fluminense) os aquilombados estabeleciam estreita relação com os escravizados da senzala. Em Jacarepaguá, por exemplo, há registros de quilombos formados nas encostas dos morros e florestas desde o século XVII até por volta da década de 1880. O que torna razoável supor que por estas terras também havia um contato estreito entre quilombos e senzalas.


Estes exemplos redimensionam ainda mais a dinâmica de ocupação territorial e as possibilidades de acesso à terra em Jacarepaguá por parte de populações marginalizadas durante o século XIX: trabalhadores negros e trabalhadoras negras livres e pobres, escravizados ou ex-escravizados (libertos e alforriados) e quilombolas. Estes grupos contribuíram para formar um verdadeiro campesinato negro dentro do conjunto da população rural carioca daquele período, especialmente na zona oeste. E conforme os dados acima, havia números expressivos de negros e negras com acesso à terra na Baixada de Jacarepaguá.


Vê-se, portanto, que ao longo das décadas finais do século XIX o monopólio da terra pela grande propriedade senhorial e escravista não era, de forma alguma, absoluto na região de Jacarepaguá. Ao contrário, havia mecanismos que garantiam a possibilidade de homens negros e mulheres negras superarem as condições sociais de exclusão que eram colocados no contexto de uma sociedade imperial, rural e escravista.


É possível constatar, nas primeiras décadas do século XX, a presença de possíveis descendentes deste campesinato negro que se formou ao longo do século XIX em diversas localidades da Baixada de Jacarepaguá. Até a metade do século XX a região era conhecida por Sertão Carioca e abrigava incontáveis núcleos de pescadores e lavradores que foram alvos de violentos despejos por pretensos proprietários, como o Banco de Credito Móvel e o italiano da Barra, Pascoal Mário. E muitas destas famílias eram formadas por mulheres, homens e crianças negras, conforme a foto que ilustra este texto.

 

Sobre o autor: Renato de Souza Dória é graduado em História pela Universidade Gama Filho e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Atua como professor de História e Sociologia do ensino básico da SEEDUC-RJ e é pesquisador do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá.

 

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